Andando pelas ruas de Bauru, interior de São Paulo, é quase impossível saber que foi ali que Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, deu seus primeiros chutes em uma bola de futebol. A cidade não possui nenhuma homenagem ao maior jogador de todos os tempos, que completa 82 anos hoje (23).
Pelé chegou a Bauru ainda criança, quando o pai, Dondinho, foi contratado para jogar pelo Bauru Atlético Clube (BAC). O time era o maior rival do Noroeste, o time poderoso da cidade. Tão poderoso que, na disputa por espaço em uma cidade de cerca de 70 mil habitantes, o futebol do BAC não resistiu, e teve que fechar as portas em 1954.
Houve algumas tentativas de retomada das atividades futebolísticas do BAC ao longo dos anos, mas nenhuma deles teve sucesso. Até que, em 2006, quando Pelé já há muito tempo detinha a coroa de Rei do Futebol, o BAC encerrou também de vez as atividades não futebolísticas. O conselho vendeu o terreno do clube para uma rede de supermercados. Em pouco tempo, não restava mais nada daquele que foi o primeiro campo de Pelé.
Algumas particularidades regionais ajudam a explicar os a ausência de vestígio da origem de Pelé na cidade. Uma delas é o fato de que o BAC jamais foi tombado para preservar a memória do Rei.
O UOL Esporte andou por Bauru. Por incrível que pareça, a indiferença da cidade em relação a Pelé é tamanha que se faz notar. Parte disso se explica pela rivalidade histórica entre Noroeste e BAC em um local onde, hoje ,só existe torcida noroestina.
A frase "o Pelé nunca fez muito por Bauru" foi diversas vezes repetida em conversas de moradores da cidade com a reportagem. Há também um episódio antigo que ficou na memória: um pênalti que Pelé cavou contra o Noroeste dentro do estádio Alfredo de Castilho no Campeonato Paulista de 1963.
A história conta que o Rei passou uma semana na casa dos pais em Bauru. O Santos enfrentaria o Noroeste, mas tudo indicava que Pelé seria desfalque: ele e o clube estavam em litígio pela renovação contratual. O então futuro Rei do Futebol foi tietado por onde andou naquele período na cidade. O povo bauruense nutria expectativa de que ele não jogasse por causa do problema contratual.
O Santos, porém, se acertou com seu camisa 10. Pelé foi para o jogo. Na partida, o Noroeste chegou a sair na frente, mas o Peixe saiu vitorioso por 4 a 3. O gol da vitória foi marcado em pênalti sofrido por Pelé. Ou, na visão da torcida local, simulado por ele.
"O Dema, zagueiro que o Pelé cavou pênalti em cima, morreu amaldiçoando o Pelé. Dizia que não tinha feito nada, que abriu os braços e o Pelé se jogou. Apitou alguns jogos depois que aposentou. Falava pra todo mundo que o odiava. Bauru tem ressentimento com Pelé porque ele nunca fala de Bauru, nunca se declarou, nunca trouxe dinheiro pra Bauru", opinou Renato, que trabalha no Noroeste e preferiu não dizer o sobrenome.
"Não foi pênalti. O juiz meteu a mão no Noroeste. Cobri esse jogo no campo. Foi um dia complicado. Depois, ele trocou uns socos ainda", lembrou Paulo Sérgio Simonetti, diretor da rádio 94 FM. O camisa 10 do Santos se envolveu em confusão com o médico do Noroeste naquele dia. "Há um ressentimento porque há. Não tem muita explicação na verdade. Bauru é uma cidade meio traiçoeira às vezes", confessou Simonetti.
O episódio não é o único que ajuda a explicar a falta de amor entre Bauru e Pelé..
"A torcida do Noroeste tinha uma certa cisma com relação ao Pelé. Quando ele crescesse poderia jogar no time profissional do BAC, então a torcida via nele um futuro adversário. Mas bem antes disso ele acabou indo para o Santos. Em um certo jogo do Campeonato Paulista entre Santos e Noroeste, o Pelé não jogou bem o primeiro tempo e a torcida do Noroeste começou a vaiar. Quando terminou o primeiro tempo, ele fez um sinal com a mão para a torcida, que esperasse o segundo tempo. Na segunda etapa, o Pelé triturou o Noroeste", lembrou o jornalista e historiador Luciano Dias Pires, de 95 anos.
A partida também ficou na memória de João Carlos Ribeiro, filho do ex-presidente da Liga Bauruense de Futebol Amador que assinou a primeira carteirinha de registro de Pelé como jogador de futebol. Nem tal documento, nem outros registros de Pelé dessa época existem mais na sede da LBFA. Segundo um secretário que atendeu a reportagem, os papéis teriam sido levados "como relíquias" pelo antigo presidente; João Carlos nega.
"Em 61, o Santos veio jogar aqui e o Noroeste saiu na frente. Quando fez 1 a 0, a torcida levantou pra xingar o Pelé, pegar no pé dele, viam ele como cria do BAC, então gritavam 'aqui é Noroeste', essas coisas. Lá no meio do campo, o Pelé fez um aceno com a mão pra arquibancada como quem dizia: me aguarde. Jogo terminou 7 a 1 pro Santos, três gols do Pelé", contou.
Há um traço comum a todas as lembranças de Pelé em Bauru: elas existem apenas na memória. Nem mesmo a casa que o Rei do Futebol comprou para seus pais com o dinheiro da Copa do Mundo de 1958 ainda existe. O terreno localizado na rua 7 de setembro foi vendido, a casa demolida, e hoje serve de depósito de lixo e outras coisas.
A única homenagem que Pelé recebeu da cidade onde começou a jogar foi o título de cidadão bauruense. O Rei do Futebol esteve na cidade para receber a honraria e ganhou até um presente inusitado: um 'carrinho' chamado Romizeta.
"O Pelé mereceu sempre atenção dos bauruenses. Acredito que alguém não gostasse dele pela origem ser o BAC, porém ele recebeu homenagem em Bauru, recebeu o título de cidadão bauruense. E ainda falou: finalmente sou cidadão bauruense. O prefeito fez uma campanha para doação do carro Romizeta. que era sensação naquela época, e conseguiu o dinheiro para dar de presente ao Pelé, que saiu dirigindo. Depois da Copa, quando veio a Bauru, não chegou nem a pisar no chão. Foi pego na escada do avião e carregado em triunfo até o carro de bombeiros onde desfilou pela cidade", lembrou Luciano Dias Pires.
Homenagens a Pelé são assunto recorrente em Bauru, principalmente por parte do poder público. Os projetos, porém, nunca saem do papel. "Não tem mais nada do Pelé em Bauru. Eu tentei fazer um busto na época que presidi o Orbis Clube, mas não foi para frente. Não tinha investimento, queriam que eu tirasse do meu bolso. Nada aqui foi para frente, estátua, praça, museu?", afirmou Simonetti.
"Eu como torcedor do Noroeste não tinha encantamento pelo futebol do BAC, que era o grande rival do Noroeste. Mas quando Pelé começou a aparecer no futebol menor de Bauru, ele jogava às vezes na preliminar. Foi realizado um campeonato infanto-juvenil e o Pelé recebeu convite para atuar no juvenil do BAC. Eu era, entre aspas, um inimigo do BAC, não ia ao campo do BAC a não ser quando o Noroeste lá jogava. Mas com o surgimento do Pelé eu passei a frequentar o campo do BAC para ver aquele menino encantar o público com suas jogadas. Quando acabava o jogo da preliminar, eu ia embora se o BAC, o grande inimigo do Noroeste, fosse enfrentar um time que ele pudesse ganhar de goleada, não ia ficar vendo a torcida festejar uma grande vitória. Mas quando eu via possibilidade do BAC perder o jogo em seu gramado, eu ficava para torcer contra, fazer figa, a fim de que o BAC perdesse e o Noroeste ficasse em uma posição melhor"
Outra rivalidade
Se dentro da cidade Pelé chegou a enfrentar certa rivalidade municipal enquanto jogava, depois de pendurar as chuteiras foi uma rivalidade regional que ajudou a findar os vestígios do Rei em Bauru.
O terreno do BAC, onde Pelé começou a carreira, foi vendido ao Tauste, um supermercado que tem matriz em Marília, cidade a 100km e principal rival de Bauru dentro do chamado Centro-Oeste paulista. A rivalidade é potencializada pelo futebol, com o clássico entre MAC x Noroeste, mas vai muito além. disso
Empresários de Tauste e Confiança, o supermercado bauruense concorrente, tinham uma espécie de acordo de cavalheiros para que nenhum dos dois mercados 'invadisse' a cidade do outro.
"Não chegava a ser um acordo, mas havia algo nesse sentido sobre o Confiança não vir para Marília e o Tauste não ir para Bauru. Só que quando fomos construir a unidade Esmeralda, o Confiança comprou o terreno do lado e colocou uma placa: em breve Confiança. Ninguém falou nada. Fomos lá, então, e compramos um terreno em Bauru. Quando o empresário do Confiança soube, ligou para o Tauste dizendo para não irmos para Bauru, se oferecendo inclusive para comprar o terreno que tínhamos adquirido pelo mesmo valor pago. Mas não teve negócio. Precisávamos expandir e eles também. No fim, foi bom para os dois. No dia da inauguração, o filho do empresário que doou aquele terreno ao BAC estava presente e inclusive descerrou a homenagem ao BAC. Ele achava um absurdo o descaso que o clube se encontrava", explicou Guilherme Cunha, diretor de ação-social do Tauste.
O UOL Esporte entrou em contato com o Confiança por meio de sua assessoria de imprensa, mas não obteve resposta.
No início, o Tauste enfrentou certa resistência para se instalar na cidade e demolir o antigo BAC. A solução encontrada pela empresa foi abrir diálogo com a vizinhança e agir rápido. Outra ação foi uma homenagem ao clube onde Pelé deu seus primeiros chutes.
"Fizemos um mural de homenagem ao BAC foi uma maneira de se conectar com a população bauruense. Houve uma comoção quando anunciaram que iria demolir, movimento de moradores também. Abrimos um canal com a vizinhança para reclamações. O terreno do BAC estava abandonado e desvalorizando tudo ao redor, isso contribuiu para aceitação. Inicialmente, a ideia era colocar uma estátua do Pelé sentado com o Dondinho com a mão em seu ombro, mas aquilo seria uma homenagem apenas a um jogador, não ao BAC em si. Queríamos colocar os funcionários com a camisa do BAC e tentamos que o Pelé autografasse uma camisa do BAC para doarmos a instituições, mas não foi para frente", contou Cunha.
Sérgio Ribeiro, ex-presidente da LFBA, foi um dos primeiros associados do BAC, e o filho, João Carlos Ribeiro, herdou o amor pelo time que hoje já não existe mais. Ele foi contra a construção do Tauste.
"Quando derrubaram o clube para construir aquele mercado, ficamos revoltados. Até hoje não piso lá. Mas também o cara do mercado de Bauru (Confiança) não tinha que inventar de ir para Marília", disse, reafirmando a rivalidade regional.
Poder público é vago
A prefeitura de Bauru nunca conseguiu levar para frente nenhum projeto de homenagem ao Rei do Futebol. Ao longo dos anos, várias ideias foram propostas e prometidas, como museu na antiga casa de Pelé, estátuas e bustos pela cidade e até uma praça temática na principal avenida de Bauru.
Mais que isso, o patrimônio histórico nunca foi preservado: nem o BAC, nem a antiga casa do Rei foram tombados a tempo. O UOL Esporte questionou a prefeitura de Bauru sobre o estado do terreno da antiga casa de Pelé e obteve a seguinte resposta:
"A Prefeitura iniciou, em 2010, um processo de tombamento do imóvel mas durante a tramitação e antes que o proprietário fosse notificado, a casa foi demolida. Em relação ao lixo no local, a denúncia foi encaminhada para a Ouvidoria da Prefeitura para identificação e notificação do proprietário a realizar a limpeza da área".
A reportagem voltou a questionar o poder público municipal sobre a falta de homenagens ao Rei do Futebol, além de nenhuma memória de Pelé em Bauru ter sido preservada. No entanto, não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Segundo Cunha, diretor do Tauste, a prefeitura não fez nenhuma exigência de manutenção da fachada ou homenagem a Pelé quando o projeto de demolição do BAC foi apresentado. Todas as homenagens ao antigo clube do Rei partiram do próprio supermercado.
"(Mural) não foi exigência da prefeitura ou nada do tipo. Prefeitura topou na hora quando o projeto mostrou criação de 500 empregos diretos e mais 300 indiretos."
Por que Pelé não é amado em Bauru, cidade onde nasceu para o futebol - UOL Esporte
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