São Paulo, Brasil
Raiva.
Misturada a muito talento.
Esse foi o sentimento que marcou a conquista do pentacampeonato mundial, na Copa do Japão e da Coreia do Sul.
Diante de gerações fracassadas, não é por acaso que hoje seja impossível fugir da saudosa última grande conquista que orgulha o Brasil.
Dia 30 de junho de 2022 faz vinte anos que o futebol deste país foi o melhor do mundo.
Depois de duas décadas e completando a cobertura das últimas sete Copas, ficou mais fácil para que eu pudesse compreender o que vivi, naquela noite silenciosa, em Yokohama.
"O Brasil começou a vencer a Copa na segunda-feira, dia 5 de maio de 2002, quando a seleção brasileira foi convocada. Era uma tarde muito quente no Rio de Janeiro. A CBF ficava no centro da capital, na rua da Alfândega. Quem entrava ou saía tinha de passar pelo meio da população e andar.
"Felipão havia acabado de convocar os 23 jogadores que iriam para o Mundial. Ele estava sendo pressionado pela mídia, principalmente a carioca, a levar Romário. Até pelo presidente Ricardo Teixeira. Aliás, os dois nunca se deram bem.
"O treinador do Brasil fez questão de enfrentar toda a pressão e não convocou Romário. Não pela lendária noitada que ele teria passado com uma das aeromoças que levou a seleção para a derrota contra o Uruguai, em Montevidéu, nas Eliminatórias. Mas porque o técnico se sentiu 'traído' por Romário na Copa América de 2001, na Colômbia.
"Ele havia pedido a Romário para ir. O atacante disse que teria de fazer uma operação nos olhos. E que não daria tempo para a recuperação. Felipão, que sempre foi rancoroso, ficou possesso ao saber que o jogador se recuperou antes, ainda durante a Copa América, e jogou pelo Vasco. Para piorar a situação, o Brasil foi eliminado por Honduras.
"Na convocação definitiva, não chamou também Djalminha. O talentoso meia deu uma cabeçada no 'seu' treinador do La Coruna, Javier Irueta. Felipão assistiu à cena na casa do ex-presidente do Barcelona Sandro Rosell. E ficou revoltado, porque já queria levar um grupo que pudesse formar 'uma família'.
"Mas naquela quente segunda-feira, a ausência de Romário dominou o ambiente. Ricardo Teixeira, que soube pouco antes da convocação pública, a decisão de Felipão, pelo coordenador Antônio Lopes, se revoltou.
"A vingança de Teixeira se materializou quando Felipão teve de ir embora da CBF. Fiquei esperando, ao lado de dois repórteres de rádio. E assisti à cena deprimente que deu o tom de ira que dominou a seleção de 2002.
"Teixeira não disponibilizou nenhum segurança para Felipão sair do prédio. O centro do Rio estava lotado, era um dia normal de trabalho. E a notícia de que Romário não fora chamado revoltou, feriu o orgulho carioca. Quando o técnico saiu na direção do seu carro, ele foi cercado por torcedores. Foi questionado, xingado, humilhado. Cerca de 30, 40 pessoas o acompanharam por dez minutos, que pareceram dez horas. Felipão fingia que não ouvia as ofensas. E foi com essa raiva, querendo mostrar que não precisava de Romário, que juntou 'sua família'.
"Naquela época os veículos de comunicação podiam pagar para que seus jornalistas acompanhassem a seleção no mesmo avião da Varig. Situação que a CBF não permite mais.
"As passagens eram caríssimas, mas valia o investimento. O Jornal da Tarde me colocou no avião que levou os jogadores para a preparação na Espanha, na Malásia. E nos deslocamentos até a Coreia do Sul, o Japão. E depois, no voo da vitória, com a taça.
"A raiva de Felipão infectou seus jogadores, foi a base da 'família Scolari'. Ronaldo e Rivaldo, e outros fundamentais, tinham perdido a Copa do Mundo de 1998. E sabiam que prevalecia o forte e absurdo boato de que a Nike havia mandado o Brasil entregar a partida para a França. Uma loucura, mas um boato em que grande parte da população acreditou, preferindo não acreditar que o time de Zidane era melhor.
"Ronaldo e Rivaldo foram apostas de Felipão. Porque os departamentos médicos da Inter de Milão e do Barcelona insistiam que os dois não poderiam disputar a Copa por problemas nos joelhos. Sem saída, o treinador enfrentou os protocolos médicos e insistiu com os profissionais da medicina da seleção. Exigia os dois na Copa.
"Ronaldo tinha fortes dores no joelho direito. O cabelo 'Cascão' foi uma maneira de tirar o foco do joelho inchado. Excelente golpe de marketing.
"Ele queria como nunca ganhar aquele Mundial, já que sua estranha convulsão na final da Copa de 1998 era apontada como o pivô da derrota por 3 a 0. Rivaldo seguia com sua sede de provar que era injustiçado pela mídia, apesar do seu talento. Não entendia que o problema era a dificuldade de comunicação e que faltava o carisma de Ronaldo.
"Ao contrário de Tite, dependente do instável Neymar, o único jogador com talento diferenciado, Felipão tinha no seu grupo nada menos do que quatro atletas que se tornariam os melhores do mundo. Ronaldo e Rivaldo já haviam sido. Ronaldinho Gaúcho e Kaká ganhariam depois o troféu.
"Além disso, havia Marcos, em excepcional forma, Cafu, Roberto Carlos. Gilberto Silva e Kleberson nunca mais jogariam tão bem quanto naquele Mundial. Mas Felipão 'ganhou' a Copa do Mundo quando resolveu bancar uma ideia que acalentava, mas sabia que iria chocar. Fazer o Brasil atuar no 3-5-2. Com Lúcio e Roque Júnior acompanhados por Edmílson. Os três cobriam os avanços de Cafu e Roberto Carlos, que atuavam muitas vezes como pontas.
"Felipão pretendia usar Juninho Paulista como titular durante todo o Mundial. Contra a Turquia, na estreia, veio a vitória, mas não deu certo. A mesma coisa diante da China, da Costa Rica. E da Bélgica. Cafu precisava de cobertura na primeira linha defensiva. Ricardinho foi testado e também não funcionou.
"Foi quando o treinador fixou o tímido Kleberson no meio-campo. Justo contra a Inglaterra. O time ideal havia sido encontrado. Veio a Turquia, de novo, na semifinal. E outra vitória, dessa vez mais segura.
"Os treinamentos eram abertos, e era claro que o Brasil teve sorte quando Emerson, volante que seria titular absoluto, e capitão da seleção, se contundiu no último treinamento antes da Copa. Ele foi 'brincar' em um rachão no gol. E deslocou o ombro.
"Com Emerson, o time iria ficar muito menos móvel, ágil, vibrante.
"Outro dado fundamental é que Felipão, ao contrário de Tite e do que ele mesmo faria em 2014, não dava privilégio a jogador algum. Não ficava aceitando dribles desnecessários, exigência de um mesmo atleta cobrar todos os pênaltis, as faltas. Dar liberdade para apenas uma família. Todos tinham as mesmas cobranças. Ronaldo e Rivaldo, mesmo treinando com dores, foram muito cobrados. Mas os reis dos palavrões de Felipão eram os reservas Edílson e Denílson. Ironicamente, por driblarem demais.
"Embora Cafu fosse o capitão, pelo exemplo, pela cobrança, Roque Júnior tinha uma liderança silenciosa e rancorosa com a imprensa.
"Diante da Alemanha, a confiança dos jogadores era imensa. O esquema 3-5-2 estava funcionando muito bem. Rudi Voller tinha uma equipe limitada, que atuava no 4-3-3. A grande estrela era seu arrogante, e ótimo, goleiro Oliver Kahn, que muitos jogadores brasileiros detestavam pela prepotência.
"Quando ele falhou na final, no primeiro gol de Ronaldo, a satisfação dos jogadores foi enorme. Com o segundo gol do atacante, o pentacampeonato estava conquistado.
"Mas viria a hora da vingança contra a imprensa. Usando o seu rancor, como jogadores contaram anos depois, 'em off', Roque Júnior deu a ideia.
E Ronaldinho Gaúcho foi o primeiro a acatar. Seguido por todo o grupo. Os jogadores decidiram, já que foram tão criticados nas Eliminatórias, na Copa América, que dariam 'o troco'.
"Foi a ideia mais estúpida para o legado de cada um.
"Estávamos nós, jornalistas brasileiros, com gravadores, blocos e câmeras a postos, na porta de saída do vestiário do estádio de Yokohama. Para as entrevistas após a conquista do pentacampeonato mundial.
"O que aconteceu?
"Ronaldinho Gaúcho e Roque Júnior foram os primeiros a aparecer, com tamborins, seguidos por todos os outros jogadores. Eles saíram cantando samba, nem olharam para nós. Fingiam que não ouviam nossos pedidos de entrevista. Foi uma situação bizarra, que resumia a raiva com que foi montada a 'família Scolari'.
"Depois de se vingarem da imprensa nacional como um todo, veio o privilégio que a Globo tinha. Graças a Ricardo Teixeira. Fátima Bernardes foi autorizada a ir no ônibus da seleção que levou os jogadores para o avião que os traria ao Brasil.
"Fátima pegou a taça, fez todas as entrevistas que quis. Depois os jogadores seguiram tocando samba. Ela nega, já até discutimos por isso, mas alguns atletas me juraram que ela, bailarina de formação, acabou sambando no ônibus.
"Nós, jornalistas, que fomos no avião da seleção, tínhamos de voltar no mesmo voo da Varig. E sem o privilégio de batedores da polícia. O combinado era que a imprensa entrasse antes, no fundo do avião. Na classe econômica, com poltronas menores. No meio ficavam os seguranças. Depois, na executiva, os atletas. Na primeira, a Comissão Técnica. E a direção da CBF.
"Eu me atrasei, ditando a matéria de embarque para o Jornal da Tarde. Fui o último a embarcar, quase perco o voo.
"Mas a cena que vi foi inesquecível. E me faz chorar de tristeza por não ter um celular que fotografasse na época.
"Na primeira classe, lógico, estava Ricardo Teixeira. Ele estava com o rosto vermelho, tinha nas mãos um copo de uísque. Estava esticado na confortável poltrona. Sob os seus pés, uma caixa metálica com o emblema da Fifa. O que havia naquela caixa? O troféu da Copa do Mundo que o Brasil havia conquistado.
"Sim, o mineiro Ricardo Terra Teixeira, que chegou à CBF por ter sido genro do presidente da Fifa João Havelange, tinha sob seus pés o troféu mais cobiçado do futebol mundial.
"Fui para o fundo do avião eufórico, tentei voltar com o fotógrafo do JT, para registrar para a história a cena, mas fomos barrados pelos seguranças.
"Na parada do avião para reabastecer, Felipão chamou um fotógrafo de uma agência para fazer uma imagem dele, exclusiva. O motivo? Irritação com outra agência que o fotografou com a tradutora japonesa no ônibus da seleção. O treinador achou que havia maldade na divulgação da imagem, como se o fotógrafo quisesse ligá-lo à tradutora.
"Depois da parada, Ricardo Teixeira se cansou de ficar com a taça aos seus pés. E a repassou para os jogadores festejarem. Cantaram, beijavam o cobiçado troféu. Alguns estavam com sua família. Vampeta já era o que mais consumiu álcool, antecipando as cambalhotas que daria em Brasília, diante do assustado presidente Fernando Henrique.
"Entrevistei em Brasília Ivete Sangalo, que havia ficado na parte da frente do avião. E me contou rindo os exageros dos jogadores. O mundo era outro.
A proximidade da imprensa deixava a seleção brasileira muito mais humana.
"O clima entre Felipão e Ricardo Teixeira seguiu péssimo. Rancor dos dois lados. Os dois mal se olharam ao chegar no Brasil, quando a taça foi levada para Brasília.
"Tanto que o treinador foi o último a receber a premiação pelo penta. O último. Ainda por ter desafiado o presidente e não levado Romário.
"Teixeira acreditava que a Seleção tinha vencido porque o time era excepcional. E avisou que não renovaria com Felipão. Em fevereiro de 2003, Parreira foi anunciado. Enquanto isso, Scolari foi treinar Portugual.
"O rancor, a raiva imperou na seleção de 2002, até o fim.
"Mas sobrava talento em campo.
"Não havia dependência e subserviência a um só jogador.
"Como acontece agora, vinte anos depois, em relação a Neymar..."
Álbum de figurinhas: relembre os titulares do Brasil pentacampeão
Adblock test (Why?)
Os bastidores raivosos, rancorosos, da seleção pentacampeã. Felipão e Teixeira não se suportavam. Time se vingou da imprensa - R7
Read More